segunda-feira, 23 de maio de 2016

Histórias de vida surda: Identidades em questão

Histórias de vida surda: Identidades em questão
 Publicado em 1998 Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre
 Autor(es): Gladis Perlin Resumo
Desde que surgiram os estudos culturais, a identidade surda tem sido reespacializada e reinvestida em novas formas. Não é mais a visão do indivíduo surdo sob o ponto de vista do corpo, da normalidade. É o sujeito surdo do ponto de vista da identidade. A identidade não é em uma visão que “universaliza” o sujeito. E trata o sujeito na alteridade e na diferença representável dentro da história e da política. Diante desta possibilidade, a pesquisa foi feita no sentido de se olhar as histórias de vida de surdos, questioná-las, perceber e refletir sobre suas resistências e chegar à política da identidade surda. Talvez eu não tenha conseguido perceber, neste trabalho, todas as nuanças que estão implicadas na temática da identidade surda e comunidade, mas as identidades surdas representadas estão aí para que questionem as pesquisas ainda pouco realizadas dentro da perspectiva dos estudos surdos. Apresentação Ao iniciar a apresentação deste trabalho, penso ser importante contar um pouco de minha história de vida, declarar minha identidade e dizer que foi através de minhas vivências como surda, mulher, gaúcha, que cheguei até um curso de pósgraduação e, mais especificamente, a interessar-me em investigar as identidades surdas 1 sob a perspectiva dos estudos surdos. Saliento que este trabalho representa um longo e sofrido processo pessoal de construção e desconstrução de valores, conceitos, visões de mundo, cultura, língua, etc. Toda a reflexão aqui contida, foi o resultado de leituras novas, que me fizeram pensar o sujeito surdo relacionado com referenciais móveis constituídos pelos discursos. As relações que tento fazer nesta pesquisa transitam por muitos aspectos, tais como: as subjetividades, as identidades culturais, as relações desiguais de poderes que se interpelam e se narram cotidianamente. O compromisso que tenho com a comunidade que pertenço, assim como com a academia, exige de mim uma postura transparente. Devido a este fato é que peço, aos interessados neste trabalho, que o leiam não na busca de verdades e de soluções de problemas sociais e culturais, mas como um discurso datado e localizado no tempo, na história e na cultura surda. Também, quero aproveitar o momento para dizer que o texto presente não deve ser lido a partir de exigências gramaticais muito rígidas mas, sim, respeitando o meu esforço, sem ter escolha, em tentar escrever uma dissertação dentro de uma língua que não me pertence. Sou surda, minha língua é a de sinais, meus pensamentos não correspondem à lógica do português falado e escrito. Minha surdez não é nativa. O encontro com a mesma se deveu a uma meningite na infância. A minha vida de surda propriamente se passou em grande parte entre os ouvintes, poucas vezes com os surdos. Atualmente procurei um lugar para viver entre os surdos como muitos de nós fazemos. Mesmo assim, como sempre, existem e continuam a existir situações de convívio com ouvintes. O que tem de ruim nisso é que os ouvintes falam e a comunicação visual, na paisagem de seus lábios, é quase sempre mínima. A comunicação existente entre as pessoas ouvintes me deixa assustada. É difícil compreender o que transmite seu pensamento através de lábios que se movimentam com uma rapidez, terrivelmente louca. Observo os lábios com atenção e consigo entender algumas idéias, mas, na maioria das vezes, desanimo pelo cansaço e pela chateação que me invade por não conseguir ter uma noção correta das mensagens dadas. Aí vem de novo o sinal de sensação da eminente exclusão na comunicação com os ouvintes. Não há saídas a não ser quando se tem um intérprete perto. Os interpretes de língua de sinais representam para os surdos a possibilidade de comunicação com a língua auditiva, de dizer nosso pensamento aos ouvintes que não nos conhecem, de contar histórias, de negociar com sujeitos que nem sempre ousam se aproximar temendo a dificuldade na comunicação. O intérprete também conhece a fundo a pessoa surda, as crenças e práticas de sua cultura, e da comunidade, conforme o testemunho da atriz surda Laborit (1994, p. 194): “tenho minha intérprete, Dominique Hoff, aquela de sempre, aquela que me conhece de cor e salteado, que adivinha pelo primeiro sinal o que vou dizer”. Nada como um intérprete assim, quando a tradução resignifica corretamente o discurso e ela assume. a novidade de sentido. Mas, nem todos os ouvintes interpretam da mesma forma, alguns consideram o surdo uma minoria excluída a quem é preciso reduzir, transformar o significado das mensagens; outros há que não entendem a mensagem e interpretam, erradamente, a seu jeito. Como a, a vida é melhor entre sujeitos surdos, eu queria ampliar minha visão sobre esses parâmetros. Há muitas situações da vida onde é necessário dizer uma ou muitas palavras a respeito do ser surdo. A idéia de fazer mestrado parecia o início. Na preparação para a prova de seleção foi rápida, mas providencial. Era preciso pedir um intérprete para o momento; depois, pedir para que, na correção da prova, a escrita do surdo fosse aceita. Para mim foi uma vitória muito grande quando isso tudo se tornou possível. Como disse, no mestrado, as aspirações de minha busca eram pela pesquisa que levaria ao sujeito surdo dentro de uma visão cultural. O encontro com o programa de pós-graduação oferecia uma linha de pesquisa que não vinha ao encontro de minhas expectativas como aprendiz de pesquisadora, pois esta via o surdo sob a ótica clínica. A forma como a abordagem da pesquisa se desenvolvia não me atraia. Era algo que batia de novo naquilo que me faria viver na eterna exclusão. Eu lutava por sobreviver na diferença. Não podia admitir uma visão clínica do surdo, o surdo como deficiente. Percebia-se com os colegas que não havia contentamento em se persistir numa pesquisa onde o espaço da consciência social do surdo não tinha cabimento. Muitas vezes, implicações e conflitos aconteciam com os professores e com alguns colegas que não conheciam mais a fundo aspectos culturais implicados na vida do surdo. Doía que a pessoa surda não era vista como um sujeito. Incomodava-me a forma como contavam o surdo. Era necessário fazer uma virada, era necessário fazer acontecer uma mudança. Um dos fatos que marcou minha trajetória dentro da pós-graduação, foi quando uma das professoras, de uma disciplina feita por mim, que não “conhecia” os surdos, iniciou um trabalho, via internet, com a finalidade de melhor se comunicar comigo. Penso que a sua visão a respeito do surdo mudou depois de iniciar-se este nosso contato. Ela, bem como os meus colegas de disciplina, através das trocas de diálogos virtuais, fundamentados principalmente em Piaget e Bakhtin, começaram a ver a importância da constituição cultural para o surdo. A vinda do professor visitante argentino Carlos Skliar foi providencial para a mudança. Sua presença possibilitou uma orientação para um adentramento no programa dos estudos culturais da surdez. Isso trouxe uma visão diferenciada para contrapor à visão clínica da surdez, presente no meio acadêmico. Assim, foi acontecendo a mudança. Como usuária da língua de sinais 2, para mim, o direito a intérprete particular foi a outra nova mudança. Podia finalmente acompanhar as aulas e expor minhas idéias, no curso de pós-graduação, sem depender das colegas mestrandas que trabalham na mesma linha teórica dos estudos surdos. Através do intérprete fiquei surpresa com a variedade e profundidade dos temas discutidos na academia, aos quais até então, não tinha acesso. Foi a partir dessa conquista que pude escolher a abordagem teórica com que melhor me identifiquei para trabalhar no mestrado. Muitos temas fascinantes surgiram através do contato com o professor Skliar e com o grupo dedicado a investigar os estudos surdos. Tão intensa foi a procura de novos caminhos que o grupo organizou o Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais para Surdos - NUPPES. Temas como: identidade, comunidade, cultura, história e arte são discutidas e pensadas. De minha parte, como integrante da equipe da linha de pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos, reconheço que enfrento a concepção radical das epistemologias norteadoras da produção do conhecimento. Sou constituidora de uma outra língua que não é a dos ouvintes e a minha produção é constituída de signos visuais e não auditivos. Para mim, a produção de sentido acerca dos significantes se dá na cultura visual. Por ser surda, sinto que geralmente necessito de uma reflexão cultural que considere implicações que a perspectiva crítica tem a oferecer para repensar as identidades culturais, entre elas incluo as identidades surdas em transformação. Reconheço a dificuldade de encontrar uma linguagem apropriada para transpor o que quero dizer epistemologicamente, e mesmo o que os surdos querem dizer, fugindo de uma retórica ouvintista 3. Reconheço que estou influenciada pela discussão cultural da surdez, onde os movimentos sociais são sempre questionados, repensados, construídos e desconstruídos. Nesse aspecto assumo a subversão da ordem na busca do direito a mudanças dos contextos onde a cultura surda se manifesta. Ao longo do trabalho busco mostrar como a minha vida está implicada na minha escolha de pesquisa. Ao fazer o recorte temático e teórico da pesquisa, busco refletir sobre as identidades dos sujeitos surdos que vivem em comunidade. Aqui o ponto central do problema é o sujeito surdo atuando na história, a sua identidade e a sua trajetória no mundo hoje. Minha leitura das identidades surdas enfoca a necessidade de acompanhar na história o trauma que seguiu o surdo, bem como os seus testemunhos, e, aí, pensar as formas e forças de identificação. As questões de pesquisa foram surgindo durante o contato com os surdos e na leitura da teoria. Tracei também objetivo da pesquisa no tempo que tentava olhar as identidades. Os sujeitos surdos com os quais tenho contato no dia-a-dia estão presentes na minha pesquisa, e, igualmente, entra sua pertença à comunidade surda.

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