Histórias de vida surda: Identidades em questão
Publicado em 1998
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre
Autor(es): Gladis Perlin
Resumo
Desde que surgiram os estudos culturais, a identidade surda tem sido reespacializada e
reinvestida em novas formas. Não é mais a visão do indivíduo surdo sob o ponto de
vista do corpo, da normalidade. É o sujeito surdo do ponto de vista da identidade. A
identidade não é em uma visão que “universaliza” o sujeito. E trata o sujeito na
alteridade e na diferença representável dentro da história e da política. Diante desta
possibilidade, a pesquisa foi feita no sentido de se olhar as histórias de vida de surdos,
questioná-las, perceber e refletir sobre suas resistências e chegar à política da
identidade surda. Talvez eu não tenha conseguido perceber, neste trabalho, todas as
nuanças que estão implicadas na temática da identidade surda e comunidade, mas as
identidades surdas representadas estão aí para que questionem as pesquisas ainda
pouco realizadas dentro da perspectiva dos estudos surdos.
Apresentação
Ao iniciar a apresentação deste trabalho, penso ser importante contar um pouco de
minha história de vida, declarar minha identidade e dizer que foi através de minhas
vivências como surda, mulher, gaúcha, que cheguei até um curso de pósgraduação e,
mais especificamente, a interessar-me em investigar as identidades surdas 1 sob a
perspectiva dos estudos surdos.
Saliento que este trabalho representa um longo e sofrido processo pessoal de construção
e desconstrução de valores, conceitos, visões de mundo, cultura, língua, etc. Toda a
reflexão aqui contida, foi o resultado de leituras novas, que me fizeram pensar o sujeito
surdo relacionado com referenciais móveis constituídos pelos discursos. As relações que
tento fazer nesta pesquisa transitam por muitos aspectos, tais como: as subjetividades,
as identidades culturais, as relações desiguais de poderes que se interpelam e se narram
cotidianamente.
O compromisso que tenho com a comunidade que pertenço, assim como com a
academia, exige de mim uma postura transparente. Devido a este fato é que peço, aos
interessados neste trabalho, que o leiam não na busca de verdades e de soluções de
problemas sociais e culturais, mas como um discurso datado e localizado no tempo, na
história e na cultura surda. Também, quero aproveitar o momento para dizer que o texto
presente não deve ser lido a partir de exigências gramaticais muito rígidas mas, sim,
respeitando o meu esforço, sem ter escolha, em tentar escrever uma dissertação dentro
de uma língua que não me pertence. Sou surda, minha língua é a de sinais, meus
pensamentos não correspondem à lógica do português falado e escrito.
Minha surdez não é nativa. O encontro com a mesma se deveu a uma meningite na
infância. A minha vida de surda propriamente se passou em grande parte entre os
ouvintes, poucas vezes com os surdos. Atualmente procurei um lugar para viver entre os
surdos como muitos de nós fazemos. Mesmo assim, como sempre, existem e continuam
a existir situações de convívio com ouvintes. O que tem de ruim nisso é que os ouvintes
falam e a comunicação visual, na paisagem de seus lábios, é quase sempre mínima. A
comunicação existente entre as pessoas ouvintes me deixa assustada. É difícil
compreender o que transmite seu pensamento através de lábios que se movimentam com
uma rapidez, terrivelmente louca. Observo os lábios com atenção e consigo entender
algumas idéias, mas, na maioria das vezes, desanimo pelo cansaço e pela chateação que
me invade por não conseguir ter uma noção correta das mensagens dadas. Aí vem de
novo o sinal de sensação da eminente exclusão na comunicação com os ouvintes. Não
há saídas a não ser quando se tem um intérprete perto.
Os interpretes de língua de sinais representam para os surdos a possibilidade de
comunicação com a língua auditiva, de dizer nosso pensamento aos ouvintes que não
nos conhecem, de contar histórias, de negociar com sujeitos que nem sempre ousam se
aproximar temendo a dificuldade na comunicação. O intérprete também conhece a
fundo a pessoa surda, as crenças e práticas de sua cultura, e da comunidade, conforme o
testemunho da atriz surda Laborit (1994, p. 194): “tenho minha intérprete, Dominique
Hoff, aquela de sempre, aquela que me conhece de cor e salteado, que adivinha pelo
primeiro sinal o que vou dizer”. Nada como um intérprete assim, quando a tradução
resignifica corretamente o discurso e ela assume. a novidade de sentido. Mas, nem todos
os ouvintes interpretam da mesma forma, alguns consideram o surdo uma minoria
excluída a quem é preciso reduzir, transformar o significado das mensagens; outros há
que não entendem a mensagem e interpretam, erradamente, a seu jeito.
Como a, a vida é melhor entre sujeitos surdos, eu queria ampliar minha visão sobre
esses parâmetros. Há muitas situações da vida onde é necessário dizer uma ou muitas
palavras a respeito do ser surdo. A idéia de fazer mestrado parecia o início. Na
preparação para a prova de seleção foi rápida, mas providencial. Era preciso pedir um
intérprete para o momento; depois, pedir para que, na correção da prova, a escrita do
surdo fosse aceita. Para mim foi uma vitória muito grande quando isso tudo se tornou
possível. Como disse, no mestrado, as aspirações de minha busca eram pela pesquisa
que levaria ao sujeito surdo dentro de uma visão cultural.
O encontro com o programa de pós-graduação oferecia uma linha de pesquisa que não
vinha ao encontro de minhas expectativas como aprendiz de pesquisadora, pois esta via
o surdo sob a ótica clínica. A forma como a abordagem da pesquisa se desenvolvia não
me atraia. Era algo que batia de novo naquilo que me faria viver na eterna exclusão. Eu
lutava por sobreviver na diferença. Não podia admitir uma visão clínica do surdo, o
surdo como deficiente. Percebia-se com os colegas que não havia contentamento em se
persistir numa pesquisa onde o espaço da consciência social do surdo não tinha
cabimento. Muitas vezes, implicações e conflitos aconteciam com os professores e com
alguns colegas que não conheciam mais a fundo aspectos culturais implicados na vida
do surdo. Doía que a pessoa surda não era vista como um sujeito. Incomodava-me a
forma como contavam o surdo. Era necessário fazer uma virada, era necessário fazer
acontecer uma mudança.
Um dos fatos que marcou minha trajetória dentro da pós-graduação, foi quando uma das
professoras, de uma disciplina feita por mim, que não “conhecia” os surdos, iniciou um
trabalho, via internet, com a finalidade de melhor se comunicar comigo. Penso que a sua
visão a respeito do surdo mudou depois de iniciar-se este nosso contato. Ela, bem como
os meus colegas de disciplina, através das trocas de diálogos virtuais, fundamentados
principalmente em Piaget e Bakhtin, começaram a ver a importância da constituição
cultural para o surdo.
A vinda do professor visitante argentino Carlos Skliar foi providencial para a mudança.
Sua presença possibilitou uma orientação para um adentramento no programa dos
estudos culturais da surdez. Isso trouxe uma visão diferenciada para contrapor à visão
clínica da surdez, presente no meio acadêmico. Assim, foi acontecendo a mudança.
Como usuária da língua de sinais 2, para mim, o direito a intérprete particular foi a outra
nova mudança. Podia finalmente acompanhar as aulas e expor minhas idéias, no curso
de pós-graduação, sem depender das colegas mestrandas que trabalham na mesma linha
teórica dos estudos surdos. Através do intérprete fiquei surpresa com a variedade e
profundidade dos temas discutidos na academia, aos quais até então, não tinha acesso.
Foi a partir dessa conquista que pude escolher a abordagem teórica com que melhor me
identifiquei para trabalhar no mestrado.
Muitos temas fascinantes surgiram através do contato com o professor Skliar e com o
grupo dedicado a investigar os estudos surdos. Tão intensa foi a procura de novos
caminhos que o grupo organizou o Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais para
Surdos - NUPPES. Temas como: identidade, comunidade, cultura, história e arte são
discutidas e pensadas.
De minha parte, como integrante da equipe da linha de pesquisa em Políticas
Educacionais para Surdos, reconheço que enfrento a concepção radical das
epistemologias norteadoras da produção do conhecimento. Sou constituidora de uma
outra língua que não é a dos ouvintes e a minha produção é constituída de signos visuais
e não auditivos. Para mim, a produção de sentido acerca dos significantes se dá na
cultura visual.
Por ser surda, sinto que geralmente necessito de uma reflexão cultural que considere
implicações que a perspectiva crítica tem a oferecer para repensar as identidades
culturais, entre elas incluo as identidades surdas em transformação. Reconheço a
dificuldade de encontrar uma linguagem apropriada para transpor o que quero dizer
epistemologicamente, e mesmo o que os surdos querem dizer, fugindo de uma retórica
ouvintista 3.
Reconheço que estou influenciada pela discussão cultural da surdez, onde os
movimentos sociais são sempre questionados, repensados, construídos e desconstruídos.
Nesse aspecto assumo a subversão da ordem na busca do direito a mudanças dos
contextos onde a cultura surda se manifesta.
Ao longo do trabalho busco mostrar como a minha vida está implicada na minha
escolha de pesquisa. Ao fazer o recorte temático e teórico da pesquisa, busco refletir
sobre as identidades dos sujeitos surdos que vivem em comunidade. Aqui o ponto
central do problema é o sujeito surdo atuando na história, a sua identidade e a sua
trajetória no mundo hoje.
Minha leitura das identidades surdas enfoca a necessidade de acompanhar na história o
trauma que seguiu o surdo, bem como os seus testemunhos, e, aí, pensar as formas e
forças de identificação. As questões de pesquisa foram surgindo durante o contato com
os surdos e na leitura da teoria. Tracei também objetivo da pesquisa no tempo que
tentava olhar as identidades. Os sujeitos surdos com os quais tenho contato no dia-a-dia
estão presentes na minha pesquisa, e, igualmente, entra sua pertença à comunidade
surda.